Take the red Pill (parte I)


O Bruno enviou-me há tempos um link para um essay (um pouco extenso) sobre o livro Fighting Traffic de Petter D. Norton. Dei-me à veleidade de traduzi-lo (com alguma liberdade devo acrescentar), por isso reforço aqui a ideia de que os créditos são para Mighk Wilson .


"Imagina-te pertenceres a uma maioria, e uma minoria poderosa conseguir alterar as leis de forma a limitar-te um direito essencial. Depois disso prosseguem a abusar dos teus direitos remanescentes e tornam a tua vida insuportável. Em resultado disto, algumas décadas mais tarde a tua maioria torna-se uma minoria.

Não é preciso imaginar um cenário hipotético, aconteceu com os peões e numa de uma forma menos limitada aos ciclistas nos Estados Unidos (e um pouco por todo lado) desde os anos 20 do séc. XX.

Desde os finais da década de 1910 e toda a década posterior os automobilistas eram um grupo pequeno mas influente (os mais ricos e socialmente bem colocados) e em rápido crescimento.

O livro “Fighting Traffic: The Dawn of the motor age in the American City” de Peter Norton documenta as alterações da percepção da estrada nesses anos. Ele descreve como uma minoria de utilizadores da estrada se mexeram para alterar convenções aceites desde há muito tempo que determinavam a forma como as ruas eram utilizadas. Exactamente o que hoje acontece mas de forma inversa pelos defensores dos direitos dos peões e ciclistas.

A tal minoria de ricos possuidores de automóveis, estavam limitados a circular a velocidades de 12 a 16 Km/h (8 a 10 M/h) nas cidades. Os peões tinham por direito a total liberdade de utilização da estrada desde que esta figura existia. Até esta altura tinham que a partilhar com outros utilizadores relativamente lentos: gado, cavaleiros, carruagens, carroças e mais recentemente ciclistas (há que notar que quando apareceram, os ciclistas eram vistos como uma perigosa adição aos utilizadores da rua, assustando cavalos e atropelando peões).

A introdução de veículos rápidos e pesados nesta mistura caótica existente resultou num aumento alarmante de fatalidades, a sua maioria peões. Nos Estados Unidos, com apenas 7,5 milhões de carros nas estradas houve 11000 fatalidades em 1920 (1 morte por cada 680 veículos por ano). Cerca de ¾ eram peões e a maioria crianças. Para comparação, actualmente existem 250 milhões de automóveis e camiões nas estradas norte-americanas e uma quantidade de fatalidades rodoviárias que varia entre os 35000 e os 4000, o que resulta num rácio de 1 morte por 6000 veículos por ano. Destes 5000 são peões e ciclistas.

Relativamente a um século atrás o sistema actual é bem mais seguro, mas não evoluiu muito nas últimas 3 décadas. Aliás, os números só não têm subido mais devido às medidas de segurança passivas (air-bags, EPS, ABS, etc.) e à melhoria da resposta do sistema de emergência.


A polícia, nessa altura tinha como percepção do seu papel a manutenção da ordem. De acordo com Peter Norton, a segurança vinha primeiro, e a resolução de congestões de tráfego não era sequer da sua competência. Aliás, engarrafamentos de trânsito eram vistos como formas de diminuir as velocidades e assim diminuir a severidade dos danos em caso de colisões. Mas os interesses económicos e do crescente mercado automóvel desejavam ver aumentado o fluxo de veículos e inventaram novas regras e toda uma nova parafernália (aparelhos, sinalética, etc.) para controlar o tráfico. Cada cidade tinha as suas regras e aparelhos, tornando a circulação muito confusa para quem circulava de cidade em cidade.

Interesses automobilistas muitas vezes trabalhavam em conjunto com direcções locais de segurança no sentido de defender o mais frágil dos condutores imprudentes.
Mas as coisas mudaram drasticamente em 1923, quando a cidade de Cincinnati no Ohio ameaçou passar uma lei que tentava impor estranguladores de potência na produção de motores de modo a limitar a velocidade máxima a 25 Km/h. À imagem de um grupo de ciclistas no fim dos anos 80 que se juntaram para se opor a uma lei que proibiria a circulação de bicicletas nas estradas rurais no Texas, os automobilistas e interesses na área reuniram-se e criaram uma oposição forte. Não há como uma ameaça para que a malta se organizar.

Perante esta ameaça, reclamava-se que uma nova era chegara e que impunha novas maneiras de pensar e de agir. A liberdade era o mote principal e que quanto menos leis melhor. Virou por completo a noção de “perigo” e “direito” na estrada: comportamentos negligentes como a velocidade excessiva por parte de automobilistas passaram a ser vistos com condescendência e o andar descontraído na estrada por parte de um peão, algo que fizera nos últimos séculos, passara para a categoria da “negligência”.


Parte da estratégia passou pelo evitar a diferenciação entre “grupos” (automobilistas, ciclistas, peões) e focar em comportamentos (conduzir, pedalar, andar). É aceitável criticar um mau comportamento, mas não criticar um grupo de pessoas por associação ao mau comportamento. O ponto crucial desta estratégia seria o facto do carro poder ser ou não considerado “inerentemente perigoso”. Caso fosse, independentemente das acções individuais dos condutores eles seriam culpados pelo factor “utilização de um objecto perigoso”. Mas uma vez mais o lobby automobilístico ganhou esta discussão, não com argumentos racionais mas com propaganda.

Foram lançadas campanhas de culpabilização das vítimas. Os peões recebiam o ónus de uma colisão. E como não existiam códigos da estrada uniformizados, esforçaram-se para o fazer com altas representações nos comités criados para a sua realização. O lobby automóvel tinha apoios do topo enquanto que os peões não tinham representação pois não existia na altura nenhuma organização que os defendesse. Sem surpresa, o novo código limitava os peões aos passeios e passadeiras. E planeando a longo prazo, a propaganda foi introduzida nas escolas ensinando as crianças que as ruas eram para os carros, não se podia brincar lá. Nas ruas as novas alterações causavam conflitos absurdos com a polícia com apreensões por desrespeito à lei.

Mais tarde e com a introdução de semáforos, os polícias já não eram necessários nos cruzamentos. Infelizmente para os peões isto significava que não existiam polícias para fazer valer o seu direito de passagem nas passadeiras. Os automobilistas começaram a utilizar o factor medo, assustando os peões com o seu tamanho e velocidade para passarem na sua vez. Isto acontecia numa altura em que existiam 19 milhões de carros contra os 114 milhões de habitantes. Mesmo em tão pouco número os automobilistas tinham o poder da lei e do lobby do petróleo do seu lado.

Impressiona a velocidade com que as coisas mudaram. Em poucos anos os peões passaram de donos e senhores das estradas para uma maioria marginal.

No princípio dos anos 20 a gasolina passou a ser taxada. Esta medida foi inicialmente condenada, mas em poucos anos aperceberam-se que o facto de pagarem pela utilização de combustível trouxe aos automobilistas não só mais espaço de rodagem como uma maior força para reclamar a posse desse espaço. A percepção da estrada passou de “espaço público” e “infra-estruturas viárias geridas pelo estado para o bem colectivo” para uma “comodidade” paga pelos seus utilizadores. Peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados, que não pagam por esta “comodidade” passaram a ter menos uma razão para reclamar a estrada.
O passo seguinte foi a criação de vias rápidas e auto-estradas no fim dos anos 20. A ideia era a de criar vias desenhadas de modo a aumentar a segurança dos utilizadores, mesmo aqueles com poucas competências de condução. Basta ver uma via rápida hoje em dia para verificar como a questão da segurança é posta de lado.

Os ciclistas são considerados danos colaterais. Nem são mencionados por Norton. Os adultos americanos substituíram a bicicleta pelos carros e só nos anos 1970s, com a invenção da BTT com qualidade de construção e múltiplas velocidades, é que voltaram a pegar nela.

As novas vias rápidas não ajudaram nesse processo. As altas velocidades praticadas pelos automobilistas somadas a leis de “circulação mais à direita possível” foram empurrando os ciclistas literalmente e figurativamente para a berma, onde não sofriam tanto com o stress e o risco de levarem razias de automobilistas obcecados pela velocidade e pelo tempo.

Para finalizar o ramalhete, eram constantemente lembrados de que são intrusos em estradas alheias. Num estudo realizado pela Florida Bicycle Association, era comum os automobilistas dizerem que “as estradas pertencem aos automobilistas; os ciclistas e os peões deviam afastar-se do caminho o mais possível”.

As forças policiais deixaram de proteger utilizadores vulneráveis, defendendo os seus direitos, para passarem a afastá-los das estradas. Hoje em dia, os polícias dão mais importância à proibição de pedalar em grupo do que a questões relacionadas, por exemplo, com a falta de iluminação que poderão ter um impacto maior numa possível colisão, pois a primeira atrapalha o trânsito dos “donos” da estrada.

A questão com os peões é a mesma. Numa discussão com um polícia ele dizia “que não ia parar 6 faixas de automobilistas para um peão atravessar a estrada para ir comprar um gelado ao outro lado”. Nós vemos agentes policiais a focarem-se mais nos peões que “andam a pastelar” do que nos automobilistas que não param nas passadeiras. Atrasar automobilistas é evidentemente um pecado original. "



TO BE CONTINUED…



[T]he automotive city took back much of the freedom it promised….[W]hen street users are free to use cars, the freedom of all street users (including motorists) to use anything else is diminished. A city rebuilt (socially and physically) to accommodate cars cannot give street users the good choices a truly free market can provide.”

– Peter Norton

5 comentários:

anabananasplit disse...

Muito fixe teres traduzido isto!

anabananasplit disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Gonças disse...

De nada amiga...ainda falta uma parte. Tenho que sacrificar outra hora de almoço :os mas vale a pena ;o)

Peter Norton disse...

Obrigado por compartilhar a informação! Continuem o bom trabalho!
Obrigado pelo seu blog lindo e informativo! (Infelizmente eu não sei Português—este é o Google Translate). Com agradecimentos, gratidão e os melhores votos,
- Peter (Norton)

Gonças disse...

YO o autor do livro comentou aqui hein...e diz que o meu blog é lindo e informativo! ;o)

Thanks Peter...i'm getting to know better you work. Me and some friends felt that change in Portugal as well and even being different scenarios the conclusion is the same: rights were taken from the most primary and fragile, the pedestrian. We need to reclaim the streets! Cheers